domingo, 14 de março de 2010

A Eva

A Eva é uma auxiliar de enfermagem no meu local de trabalho. Sempre bem disposta, sempre risonha, sempre impecável. Solteira, 36 anos, nasceu em Salamanca e vive com a sua mãe nos arredores de Barcelona.
Há coisa de um mês e meio, eu própria fiz um bolo para lhe cantarmos os parabéns. Em tom de brincadeira, para a tirar do sério, comecei-a a chamar de abuelita tudo porque desde o Natal passado que se queixava de dores numa coxa.
Os médicos diziam que era uma espécie de problema de articulações e lhe prescreviam anti inflamatórios e analgésicos.
A Eva insistiu que lhe fizessem uma biopsia a essa perna. O resultado não poderia ser pior: um sarcoma de 16 cm em fase III-IV entre a coxa e a virilha. Um sarcoma que necrosou o próprio fémur e tecidos adjacentes. Um tipo de sarcoma que só conheciam dois casos iguais, ambos nos Estado Unidos. Que recomendariam começar com quimioterapia e radioterapia logo na semana seguinte. Que essa quimioterapia será uma quimioterapia que ainda está a ser estudada quanto ao seu nível de eficácia como a nível de efeitos colaterais. Literalmente era seria cobaia de todo aquele tipo de tratamento.
Estava com ela quando ela abriu aquele maldito envelope. Fui das primeira pessoas a abraçar-lhe e a dizer-lhe que tudo iria correr bem (com aquele panorama que mostrava a carta talvez a tentar enganar-me a mim própria, sei lá).
Nesse mesmo dia avisou que não voltaria a trabalhar na clínica.
A Eva teria que cortar o seu longo cabelo, tomar injecções para que não tivesse menstruação, ser submetida a uns quantos exames e ficaria hospitalizada durante o seu tratamento.
Dado que o hospital oncológico fica um pouco afastado de Barcelona e dado que acima de tudo não a queria visitar sozinha, hoje eu e outra colega ganhamos coragem fomos visita-la.
Como mantenho contacto com a Eva quase diariamente por telefone, nas nossas conversas falavamos de quase tudo, desde o mau feitio de um colega de trabalho até aos alimentos que ela tolera ou não...
E como sei que muitas vezes os hospitais não fornecem certo tipo de alimentos, levei na mochila umas quantas gelatinas e pão integral para que ela fosse comendo, tal como levei uns quantos cremes hidratantes e protectores labiais para proteger da secura cutânea própria da radioterapia.
Chegamos ao hospital. Tanto eu como a minha colega estávamos um quanto amedrontadas do cenário que iríamos encontrar naqueles corredores e no quarto da Eva.
Nos cruzamos com umas quantas pessoas que estavam com o cabelo raro e que passeavam com os familiares pelos corredores, pessoas emagrecidas, com olhos encovados e extremamente pálidas. Basicamente era impossível que não ficássemos com os olhos rasos de lágrimas.
A entrada do quarto dela inspiramos fundo e tentamos disfarçar o nosso medo com um sorriso.
Lá estava a Eva deitada na cama com uns quantos tubos com medicação endovenosa. Esboçou um sorriso de cansaço. Tinha os lábios secos, um dos efeitos da quimioterapia. O seu cabelo fora cortado até aos ombros, porque segundo ela não teve coragem de corta-lo todo no mesmo dia.
Estava muito inchada, própria de quem tem retenção de líquidos.
Referia dores e todo o corpo, especialmente no couro cabeludo que segundo ela parecia que se rompia...
Ver a Eva naquela cama fez-me retornar a 2005-2006 quando o meu pai foi hospitalizado e a carga emocional que todos nós passamos...
Pediu-nos ajuda para a levar ao WC e para que a duchassemos porque não tinha forças para se mover sozinha. Enquanto a ajudávamos falávamos de coisas banais, contávamos piadas e por momentos parecia a Eva que soprou as velas há um mes e meio.
Muito devagar comeu um copo de gelatina pois dizia que cada gole de água que tomava parecia que bebia um litro de golpe.
Contou-nos ela que a equipa de oncologistas lhe falou na possibiliade de amputar a perna mas que não garantiram salvação. Seria novamente uma espécie de cobaia para avaliar a eficácia dessa cirurgia no combate ao sarcoma. Não consigo imaginar a Eva com uma perna apenas...não consigo...
Estivemos com ela durante duas horas. E pretendemos voltar a visitá-la em breve como é obvio.
Este post é um desabafo meu para todos os que se dedicam a ler isto.
Pessoas tão fabulosas como ela e o meu pai, pessoas que nos cruzamos na rua, no trabalho, na fila do supermercado ou na entrada do metro, celebridaddes que lutam contra este maldito demónio... Esta doença não deveria existir... é muito sofrimento para uma pessoa só... Afinal o cancro não é só a existência de células tumorais no corpo... Cancro é também ser obrigado a cortar todo o cabelo, a ficar com as veias todas destruidas por tanta medicação, é ter desejo de comer uma gelatina e comer em quadradinhos pequenos com medo de ter uma nausea...
Cancro é quando estamos sofrendo num quarto de um hospital e os amigos não visitarem porque têm medo "de ficarem impressionados", é quando as pessoas olham para nós com uma compaixão...Cancro é...
Enfim...
Eva, espero que esteja equivocada quanto ao prognostico.

1 comentário:

  1. Olá

    Bem, comecei a ler isto como se fosse um simples elogio pela constatação pela pessoa que a tua colega e amiga é. Depois vi tratar-se de algo pior. Muito pior. SEja como for tens cumprido a tua parte. Gostei de ler isto. " levei na mochila umas quantas gelatinas e pão integral para que ela fosse comendo, tal como levei uns quantos cremes hidratantes e protectores labiais para proteger da secura cutânea própria da radioterapia".

    Há aqui um interesse pela amiga para além de uma simples visita, que se tornou prático pela lembrança do que pode ser útil e bom.

    As doenças são todas más, mas ha umas que sao piores do que outras. E mexe com tudo. Um grande beijinho para ti... e troço obviamente pela tua amiga Eva.

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