domingo, 20 de dezembro de 2009

Contactando com uma mulher que se submeteu a uma mastectomia

Ingressou no meu serviço uma senhora dos seus 55 anos anos para ser sujeita a uma mastectomia da mama esquerda.
Como faz parte do protocolo, apresentei-lhe o serviço, demonstrei-lhe como funcionava os botõezitos que estão ao lado da cama, expliquei-lhe como funcionava o televisor, avaliei os sinais vitais, realizei a entrevista e etc...
A mulher teve uma atitude comigo de uma pessoa arrogante, mal educada, daquele tipo de paciente que mais nos apetece mandar pentear macacos...
Queixava-se que o quarto era frio, que não tinha cobertores adequados (sim, porque aqui em Barcelona faz um frio de morte), ameaçou processar o hospital de que as duas horas que passou no piso de baixo a fazer exames complementares lhe puseram engripada bla bla bla...
Finalmente a senhora baixou para o bloco operatório e eu só rezava que regressasse quando já tivesse o outro turno já que não estava com a mínima paciência de ouvir todas aquelas queixas...
A paciente regressou ao serviço às 20h30. Faltava uma hora e meia para trocar de turno.
Com toda a minha simpatia e paciência a recebi, lhe pus toda a medicação que lhe convinha... ela gritava e esperneava com o seu parceiro e com a filha. A filha era uma jovem dos seus vinte e cinco anos e estava de cadeira de rodas.
A filha saiu meia hora depois.
Quando fiz a minha ronda antes de acabar o turno, fui visita-la.
A senhora estava deitada com lágrimas nos olhos. Perguntei-lhe se eu poderia fazer alguma coisa.
Sentei-me um bocado ao lado dela... (Digam o que disserem, mas o facto de um profissional de saúde se sentar ao nível de um paciente enquanto se conversa ajuda bastante a desenvolver o diálogo).
Ela comenta-me que tudo lhe doía: o facto de perder uma mama, o facto de isso lhe doer quer fisicamente quer psicologicamente. Mas garante-me que o que mais lhe doía era o facto de ter recebido tão pouco apoio emocional.
Segundo ela, se não fosse o seu namorado estaria sozinha naquele hospital. E que "la soledad es jodida" a solìdão é fodida
Que apesar de ter dois filhos, três irmãos e uma mãe ainda viva, nenhum deles teve a audácia para a apoiar nem a visitar. Nem sequer ligaram para ela a desejar boa sorte ou a perguntar como tudo correu. "Nem a minha filha aguentou uma hora", dizia ela.
Comentou-me que foi sujeita a maus tratos pelo seu ex-marido. Que foi ele que lhe rasgou um lábio, que lhe partiu o nariz. Conta-me que a sua filha está paralítica porque o mesmo homem com um ferro atingiu-lhe a coluna fazendo com que ela não pudesse mais caminhar.
Comentou-me a sua vontade de se suicidar... Porque a sua vida corre mal, porque não suporta a solidão, porque tem um cancro em que os médicos discutiam se lhe "tiravam uma mama, ou mama e meia ou mama e três quartos ou uma mama e um pulmão". Explicava-me que a sua vida não se resumia a uma quantidade de gânglios que deveriam ser retirados.
Pacientemente expliquei-lhe que o facto de ter sido operada era um óptimo sinal porque em regra geral só operam quem tem esperança em recuperar.
Expliquei-lhe que mais tarde se não houver contra-indicações puderá por uma prótese mamária.
Quanto ao facto de não ter recebido visitas tentei acalmar os ânimos, explicando-lhe que há pessoas que não suportam hospitais mas que brevemente a visitariam...
Disse-lhe que era uma pessoa corajosa... porque apesar de ter sido sujeita a uma intervenção cirúrgica ainda tinha forças de gritar com a filha e com o namorado e de ter um feitiozinho tão difícil (disse-lhe isso piscando o olho ao namorado que estava connosco no quarto o que provocou um sorriso à paciente). Disse-lhe que era tão corajosa que não precisava de nenhuma mãe, filhos ou irmãos naquele quarto a chorar com ela ou pior, a ter pena dela. Que iria sair-se bem no meio disto tudo...
Falei-lhe na possibilidade de se juntar a grupos de apoio oncológico... que não era a única mulher que estava numa cama de hospital com aquele problema...
Rematei a minha conversa com ela, com uma frase que digo muito para mim própria:
"São para as pessoas mais fortes que Deus concede os maiores desafios"
Hoje não fiquei nesse serviço... Mas no balneário ouvi as minhas colegas comentarem que a senhora apesar de debilitada pela cirurgia era "insuportável, arrogante e com uma pontaria exímia porque acertou em cheio uma caneca com água em cima de um familiar"

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