
Ainda me recordo do sermão que as profs do 1º ano de curso nos deram sobre a postura adequada de um aluno de enfermagem/enfermeiro: cabelos presos, nada de brincos aneis e pulseiras, relógios de pulso, piercings, barba por fazer, nada de pins na roupa, nada de tatuagens visiveis, sapato azul escuro fechado, meias brancas (pés de gesso hehehe), nada de telemoveis...
Tudo isso cumpri ate ao meu 3º ano de curso, altura em que senti um pouco mais de liberdade e autonomia na coisa e comprei aqueles sapatos de borracha azuis tipo hospitalar (e que tanto amealhei para compra-los- 40 euros, os cretinos), comecei a usar uns brincos (simples e pequenos) e a usar relogio.
Ainda me recordo do sermão das profs do primeiro ano sobre o saber ser e o saber estar dentro de um serviço (Obrigada, enf X; Pode tirar uma duvida, enf Y, Precisa de ajuda, enf Z; permita-me dar-lhe a cadeira e eu fico de pé enquanto passamos o turno, enf W).
Ainda me recordo de ter confundido a enf chefe de um serviço onde estagiei com uma colega minha (mesmo tamanho e voz parecida) quando ela disse qualquer coisa sobre o sistema SAPE e eu digo em tom de gozo"pensas que sou alguma tótó? Anda para aqui e mostra-me o que sabes sobre esta porra" e mais tarde essa mesma enf gritar comigo em plena passagem de turno dizendo que sou uma mal educada por a ter tratado por TU e por calão inapropriado, quando eu e a minha colega lhe explicamos detalhadamente o que se tinha passado e de eu lhe ter pedido desculpas no momento em que dei conta do meu erro.
E essa mesma senhora enfermeira-chefe na altura de avaliação final vira-se para o meu orientador de estágio e diz-lhe "Esta nunca será boa enfermeira".
Sou enfermeira à um ano e meio. Já trabalhei em vários serviços e pela primeira vez fiquei responsável por uma aluna de Enfermagem, por ser a enfermeira do serviço de cardiologia com melhor capacidade para liderar, gestionar e aturar alunos de enfermagem (Esta boca é para si, senhora-enfermeira-chefe-que-a-quem-a-tratei-por-tu-e-que-dizia-que-nunca-seria-boa-enfermeira).
Trata-se de uma aluna de enfermagem mais velha que a minha mãe que sempre trabalhou como auxiliar de enfermagem e que um dia teve um sonho que teria uma reforma como enfermeira e não como auxiliar. Matriculou-se numa escola de enfermagem aqui em Barcelona e agora estou responsável por ela lá no serviço.
A aluna é simpática, conversadora, passa a vida a falar nas filhas e nos gatos que adoptou... mas penso que teve muito azar com a tutora.
Esta aluna, segundo ela, trabalha num dos mais importantes hospitais de Barcelona ou seja, tudo que ela faz ou fez nesse hospital é palavra sagrada e adequada...
Frases como "Eu não sei como vocês preparam um paciente para um TAC, mas eu no hospital X...." ou "No hospital X, fazemos assim e assim..." "Ai, no hospital X é melhor" "Vocês colocam dois resguardos numa cama??? Nós no hospital Y só se coloca um" ou seja durante 8h que a aguento por dia ela fala pelo menos 800 vezes no hospital X e no quanto ele é bom...
Pergunto-lhe algo sobre farmacologia, a mulher não pesca nada... Não sabe as contraindicações de um estupido Atrovent, vitamina K=KCL, e outras barbaridades.
Esteve QUASEEEEE a salinizar uma via com mepivocaína em vez de soro fisiológico (a tonta apanha qualquer ampola de plastico e julga que é soro).
Estes dias a orientadora de estágio veio-nos visitar e tive que lhe desabafar o quanto me está dificil aguentar a aluna... desde as maravilhas do hospital X, à pura ignorância, à pura lentidão, até a pura incapacidade de gestão de tarefas, aos seus atrasos sucessivos (entra na sala de enfermagem já a passagem de turno vai a meio) até ao facto de ser corajosa ao ponto de dar ordens e comandar as auxiliares de enfermagem que fazem parte da mobília com um "faz-me um café" ou "vocês passam muito tempo na copa a lanchar" e de dar dicas a uma enfermeira sobre como fazer um electrocardiograma... Segundo elas, a aluna parece a rainha do serviço.
A aluna falou com a orientadora e segundo a orientadora a aluna fez as seguintes queixas de mim:
* Que a mando avaliar os sinais vitais aos pacientes, quando no serviço são as auxiliares de enfermagem (o que eu não concordo nem aceito que façam esse trabalho por mim a não ser quando não tenho tempo) e que no hospital X, onde ela trabalha como auxiliar nenhuma enfermeira avalia as constantes.
* Que não gosta da minha atitude com alguns médicos e auxiliares porque tenho uma relação amigável e informal ( escandalizou-se quando um médico pegou em mim ao colo num momento de brincadeira e porque comprei um bolo de anivesário para festejar os anos de uma auxiliar)
* Que não aceita que a ponha com auxiliares a trocar fraldas de pacientes ou a prestar cuidados de higiene no leito (porque segundo ela isso não é trabalho de enfermeira)
* Que eu ou meu colega tuga me passa ou passo eu a ele o turno em português (estamos a falar dos pacientes que ficam exclusivamente ao meu encargo). Segundo ela o turno deveria ser passado em castelhano ou melhor, em catalão. E que deveria falar em castelhano aos pacientes tugas que por lá aparecem...
* Que eu lhe faço muitas perguntas de farmacologia, anatomia ou de patologia... segundo ela um enfermeiro não precisa de saber as coisas com tanta especificidade.
Perguntei à orientadora o que achava das críticas dela. E deixou-me arrasada por completo quando me disse que não a deveria por a avaliar tensões, nem a ajudar a mudar fraldas nem cuidados de higiene e que tão pouco eu deveria fazer-lhe perguntas, porque "segundo a instituição universitária dão prioridade ao saber estar e ao saber fazer e não a saber porquê, porque para isso seriam médicos" Institivamente afirmei que o saber fazer também uma auxiliar com seis meses de curso são o sabe se a ensinar.
Neste momento eu e essa aluna estamos em guerra aberta. A sua atitude desafiadora foi "colar-se" à minha colega que apesar de ser uma óptima pessoa, falta-lhe a segurança e o pulso necessário para se responsabilizar por um aluno (palavras de supervisor e da colega).
Em conversa com a aluna expliquei-lhe como funciona a enfermagem em Portugal, o quanto deveria estar "grata" por no seu país não ser responsável para avaliar uma estúpida tensão arterial ou de mudar uma nojenta fralda, de estar num país que em que um enfermeiro não deverá estudar tão especificamente o que é um hallux nem como actuar perante uma taquicardia ventricular, aliás, um enfermeiro em Espanha (principalmente no serviço de cardiologia) pelos vistos nem precisa de saber do que se trata.
Expliquei-lhe que o Português é a minha língua materna e que faz parte da minha identidade e que seria incapaz de passar um turno ao meu colega tuga em outra língua. Mostrei-lhe que até os chineses entre eles falam a sua língua mesmo estando a sua loja cheia de espanhóis.
Expliquei-lhe a importância de uma relação multidisciplinar. Que um médico é tão importante para mim como uma enfermeira e como uma auxiliar. Que todos temos as nossas funções que se devem interligar e de preferência com uma sólida relação entre elas. Que devemos ser ousados para ajudar uma auxiliar a mudar uma fralda como devemos ser ousados para avisar um médico de que VOU por por exemplo uma furosemida a um paciente com edema agudo do pulmão. Que todas os funcionários do hospital são nossos aliados...
Estou e sinto-me super envergonhada. Venho de um país em que alguém disse que nunca seria boa enfermeira e neste país sou a super enfermeira que sabe demasiado e que considera inapropriado que avaliar tensões, prestar higiene no leito e mudar fraldas é trabalho de Enfermagem.